sexta-feira, 15 de março de 2013

Madrugada orgânica

Abriu as pálpebras, olhou o teto. Na hora, lembrança. Coçou os olhos num movimento proposital como que para apagar o pensamento que lhe envolvia tão cedo pela manhã. Que horas são? Abriu a cortina de tule pra ver o céu estrelado e se dar conta de que não precisava ter levantado. O relógio no criado-mudo marcava 4h30. Bom, já que estou de pé, vou fumar um cigarro. Sentou na varanda pra ver a neve derreter no chão da rua, o sereno enferrujar os postes em art-nouveau, ou qualquer outra imagem invisível aos olhos. O silêncio avassalador notívago deu volume à brasa do primeiro trago queimando. Adoro essa paz, pensou. A neve no chão, os passos solitários de um ninguém cheio de pensamentos ali, andando. Sozinho. É homem ou mulher? Não dava pra ver, estava encapuzado e debaixo de um guarda-chuva. Chove? Neva. Bom, é alguém. O que será que ele pensa ali, sozinho, andando? Aqui dentro nenhum som, ela dorme silenciosamente. O único ruído era do vento entrando poético através das cortinas de tule. E, de quando em quando, da brasa queimando. Na mesa de cabeceira, ao lado do relógio, uma garrafa e duas taças. Todas vazias, o copo d'água cheio.

O que estava pensando mesmo? A cena não lhe parecia conferir necessidade de estar presente em qualquer outro momento que não fosse aquele. Tudo estava perfeito, daquele jeito tão sereno. Tão afeito. Tanta paz em seu peito. Lembrou-se de mirar a neve, mas o encapuzado já tinha desaparecido. Na rua branca, apenas impressões de seu calçado pra lembrar alguém que um dia passara por lá. Mas quem lembraria, se nem eu lembro o que pensara agora há pouco? E ele, o que será que pensava?

Na convicção da imbecilidade que é precisar pensar, contentou-se em sentir. Num movimento quase orgânico, entrou, encaixou-se de volta embaixo do cobertor, deu um beijo na boca roxa adormecida e suspirou tranquilo, desejando em seu ego solidário que o encapuzado não estivesse pensando em nada. Nem mesmo na beleza que poderia ter a imagem visível da neve afogando os postes em art-nouveau.

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