segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Iconofagia por trás de uma sociedade imagética

O texto a seguir serve à proposta de fazer uma análise de algum fenômeno de repercussão meteórica semelhante ao caso do Michel Teló. Por sugestão de um amigo, a pauta escolhida foi o site 9gag, e o único referencial teórico que usei foi o (excelente) livro do Norval Baitello Junior chamado 'A Era da Iconofagia'. O original deste aqui respeita normas e a estilística acadêmicas, e mesmo tendo feito algumas adaptações, a linguagem permanece formal. De qualquer forma, a perspectiva é interessante pra quem se aventura a refletir as possibilidades que plataformas interativas da internet nos guardam. Segue:

Para iniciar uma reflexão em torno dos modos de reprodução do homem, bem como do uso imagético que ele faz, é preciso atentar-se para a origem de todo e qualquer processo de comunicação, o corpo. Da mesma forma, o corpo é o ponto de chegada do mesmo processo, que envolve irrefutavelmente uma conjuntura histórico-social, inerente à memória, aos modos de percepção e, mais amplamente, à cultura.

Em pleno século XXI, o homem vê-se como parte de uma sociedade imagética, onde a representação visual (e também olfativa, gustativa, tátil e auditiva) nos apelos midiáticos representa a única possibilidade de vida para os símbolos presentes no inconsciente coletivo.

O psiquiatra Heinrich Fierz explica o conceito de símbolos diretores como a referência maior em uma cultura, e esses símbolos, enquanto sínteses sociais, têm efeito não só na memória coletiva, mas na consolidação da psique do indivíduo. É interessante atentar-se para a relevância, portanto, que as imagens têm no processo de formação de uma cultura, dos valores e das mensagens que dela fazem parte.

O que Norval Baitello Junior ressalta tendo em vista a sociedade imagética é a reprodutibilidade desenfreada dos símbolos, mais especificamente das próprias imagens. Ele aponta diversos fatores críticos que surgem dessa situação, como o que Dietmar Kamper chama de crescimento exponencial da invisibilidade, além da inflação da reprodução e a obsolescência gradativa dos signos.

Colocando as teses de Baitello Junior em prática, utilizamos o exemplo de um website chamado 9gag. Quando em 2008 dois irmãos chineses decidiram fundar este site, houve uma surpresa em virtude do sucesso meteórico que ele alcançou em menos de quatro anos, atingindo 60 milhões de acessos únicos por dia e cerca de 1,7 bilhão de pageviews diários no mundo todo. O slogan Just for fun explica a proposta do site, que é provocar diversão a partir da criatividade e inteligência de quem participa.

O 9gag, feito pelos usuários e para eles, trata-se de uma plataforma onde os participantes postam imagens autorais e aguardam a aprovação dos outros. Em vista dessa aprovação, há três páginas de categorias dos gags (termo empregado para designar cada imagem postada), sendo que um gag novo é direcionado à Vote Page. Caso consiga o número de aprovações necessário, vai à Trending Page e, posteriormente, seguindo os mesmos critérios, à Hot Page.

Em geral, as imagens que compõem o 9gag baseiam-se em memes, ou seja, mensagens que se repetem e se repetem de pessoa para pessoa ou de local para local, podendo ou não ser minimamente modificadas. Termo criado em 1976 por Richard Dawkins, o meme representa uma unidade de informação especialmente armazenada pela memória que tem um poder maior de autopropagação, e pode se dar na forma de imagem, vídeo, som, ou até mesmo de uma fala. Neste site especificamente, os memes pautam as publicações e podem variar de acordo com acontecimentos externos (eventos políticos, situações polêmicas em voga, etc).

Na tentativa de relacionar a valorização da imagem que os meios eletrônicos trouxeram ao modelo de funcionamento do site em questão, penso o conceito original e etimológico da palavra ‘imagem’. Do latim imago, refere-se ao retrato de um morto, portanto, como afirma Baitello Junior, implica a ausência de uma presença e, da mesma forma, a presença de uma ausência.

Em suas mais diferentes configurações, as imagens propiciam significações infinitas, e portanto obscuras, escondidas estas nas camadas da história, do tempo, da memória e da cultura. De qualquer forma, tais significações imergem no inconsciente coletivo e fazem com que a disseminação de imagens, ainda mais com a colaboração das redes sociais, seja infinitamente facilitada.

A velocidade com que as imagens são postadas na primeira página do 9gag e transferidas para as próximas faz com que muitas vezes elas se percam em meio ao bombardeio de gags vindo de todas as partes do mundo. Como proclamou Baitello Junior, “a lógica da sociedade imagética pensa a curto e curtíssimo prazo, o prazo da última repetição, da última reprodução, que já estará obsoleta antes mesmo do término de sua curta vigência.”

A reprodução acelerada vista na internet, e especialmente em espaços digitais como o 9gag, acarreta o “processo inflacionário das imagens que fecham portas para o mundo por serem construídas a serviço do vetor de exteriorização [...], sem a interioridade da imaginação”, como afirma mais uma vez Baitello Junior. Na verdade, os gags “autorais” vêm muitas vezes com uma mensagem não subliminar, mas explícita, escancarada para aquele que quer a união dos fatores facilidade e velocidade para consumir – e devorar – mais e mais imagens. Segundo ele, “apresenta-se aí a temática da ofuscação pela desmesurada proliferação das imagens e do tempo acelerado gerado por sua reprodução. Assim, aceleração e inflação, por operarem no registro do excessivo, inevitavelmente geram perdas.”

A perda a que ele se refere jaz na efemeridade das imagens sucessivamente disseminadas e consequentemente consumidas. Imagens exógenas, ou seja, que visam ao externo e se manifestam, proliferam e reproduzem indiscriminada e compulsivamente, levam a nada além de outras imagens, num processo infinito e desenfreado de sucessão e substituição. Irrefutavelmente, é para este caminho que apontam os memes e o modelos de reprodutibilidade de sites como o 9gag.

Por trás do processo de exteriorização inerente aos símbolos exógenos (em detrimento da interiorização dos mesmos), vê-se não só a procura das imagens, mas também pelas imagens. Uma vez que elas vão de encontro aos nossos olhos, antes que as vejamos, elas nos vêem. É a partir dessa reflexão que Dietmar Kamper atribui ao “padecimento dos olhos” a “principal enfermidade de nosso tempo”. Unida a ele, vem a perda da profundidade nas percepções corporais e mentais.

Norval Baitello Junior utiliza o termo “superfície” e, posteriormente, “epidérmica” para referir-se à nova ordem social que se alastra e se apóia na chamada “serial imagery”, a produção e reprodução em massa das imagens. Vemos acontecer este fenômeno de forma cada vez mais explícita, e o site 9gag fundamenta-se em relativamente poucos tipos de imagens, de modelos. É a partir destes modelos que vão ocorrendo as reconfigurações, e cada usuário vai adaptando-o conforme seu pensamento criativo. No fim, torna-se um espaço destinado à repetição interminável de símbolos pré-produzidos e pré-definidos. Para ele, “a nova sociedade não mais vive de pessoas, feitas de corpos e vínculos, ela se sustenta sobre os pilares de uma infinita “serial imagery”, uma sequência infindável de imagens, sempre idênticas. O admirável e desejável já não é mais a diferença, mas a absoluta semelhança. Não mais a capacidade criativa e adaptativa é o que se sobressai, mas sim a necessidade de pertencimento.”

Justamente o “amor” ao site que os próprios usuários ironizam nos gags, uma espécie de vício de muitos que sucumbem à força maior da barra de rolagem, sem conseguir fechar a janela, dá-se pela necessidade de pertencimento. Entrar em contato com outro indivíduo do lado oposto do planeta – e descobrir que ele possui pensamentos e percepções similares – significa perceber um companheirismo, significa a fuga da solidão. Significa fugir da solidão por meio dos símbolos.

A necessidade adquirida pelas pessoas de entrar em contato com imagens que façam jus a certo aspecto de sua vida, que remetam a um aspecto de sua história, que façam parte de sua memória, fez com que as próprias pessoas se tornassem imagens, ou meramente ecos das imagens. Alguém que navega o site e visualiza um post específico que cumpriu essas condições e traçou uma relação em algum ponto da memória – individual ou coletiva – deste usuário, vai reproduzi-la de uma forma ou de outra em determinado momento de sua vida. Seja por meio da fala, de um desenho, da escrita ou qualquer outro modo, esta imagem terá um eco.

A partir deste eco, a reprodutibilidade manter-se-á, num processo infinito de produção de imagem em cima de imagem. Dá-se então o fenômeno da iconofagia, termo empregado por Baitello (2005) para designar a gula das imagens, seu auto-consumo, a devoração delas e por elas: “Assim, há tempo as imagens procedem de outras imagens, se originam da devoração de outras imagens. Teríamos aí o primeiro degrau da iconofagia. As imagens que povoam nossos meios imagéticos se constituem, em grande parte, de ecos, repetições e reproduções de outras imagens, a partir do consumo das imagens presentes no grande repositório. O segundo degrau da iconofagia surge quando nós humanos começamos a consumir as imagens.”

Baitello parte dessa reflexão para reafirmar o uso superficial que temos da imagem, uma vez que utiliza o termo “consumo”, que tem o sentido etimológico do latim “devorar”, “destruir”, “extenuar”. Há cada vez mais eco, cada vez mais consumo, mas há cada vez menos processamento da informação, uma vez que as imagens, com o objetivo de serem elas mesmos consumidas, devoradas, nos são dadas já “mastigadas”. Trata-se de um processo ao qual o autor atribui a denominação de "alimentar por espelhamento".

Só teus versos

Era então que em nós ardia
E como só e como iguais
Na tua pele e na minha eu sentia
O que então não era demais

Tentei me achar no que eram versos
Não mais que eram então tão teus
Mas de tão só teus e de tão perversos
Achei-me só na imersão dos teus

Era então naquele dia
Dos teus tão perversos versos
Que em mim nada mais que ardia
O que em nós já estava imerso

Naquele dia então era mais
Você nos meus e eu então nos teus
E então como que só e por trás
Me deixou só e só com os meus

Foi então que, só, eu disse: traz
Traz pra mim aquele teu verso
E só, você então disse: sais
Vou ficar aqui só e só perverso

Então que por demais eu ria
Dos demais caprichos teus
E só de um verso eu sabia
Mas que em dois se transformaria
É que os teus versos não mais seriam meus
Mas só os meus versos seriam só teus

domingo, 16 de dezembro de 2012

É tarde

É cedo, não dormi. Abro a sacada. Um cigarro,
penso. Um cigarro vai me fazer te
esquecer. Um cigarro vai me
fazer te esquecer
Então eu
Acendo
Trago
Olho
Penso
Sinto
Trago
E sinto
E vejo
Na brisa
Na sombra
A sua sombra
E trago você na mente
Então jogo o cigarro no telhado
E vejo a brasa esmaecer. Naquela brisa
Assim como nós. Assim como nós. Assim como nós

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Marcelo Hessel, não gostei da sua crítica

Gosto de ler a crítica depois de ver o filme. Assisti hoje ao “Infância Clandestina” do Benjamin Ávila no Unibanco (novo Itaú) e fui direto ao Omelete. Quando vi que o texto era do Marcelo Hessel já esperei ver algo que corroborasse minhas impressões a respeito do longa. Fiquei triste. É chato ver uma pessoa cujas opiniões você respeita falar tanta porcaria num só lugar. Claro que as “porcarias” existem sob o meu ponto de vista, suspeito pelo fato de o filme, por motivos diversos, ter me agradado tanto. Este texto, escrito às 4:15 da manhã, vale pra quem já viu o filme e leu a crítica.

A baboseira começa na linha fina: “Candidato argentino ao Oscar não escapa dos problemas do "filme de ditadura com criança””. “Problemas do filme de ditadura com criança”. Não bastasse o crítico implicar que existem problemas prévios já implícitos a essa temática, ele pôs “filme de ditadura com criança” entre aspas, como se tratasse de um gênero todo específico do mundo cinematográfico: “o filme de ditadura com criança”.

Contextualizando: um garoto vive com a família-membro de um dos grandes grupos guerrilheiros da Argentina de 1979, quando a repressão era voraz. O pequeno se vê em meio à imposição ideária de sua família, o que o faz viver sob falsa identidade. Ele se apaixona por uma menina na escola, e isso passa a ser objeto importante do filme. Cenas aparentemente banais levam alguns minutos a passar, sempre sob angulações diferenciadas, enquadramentos inesperados e perspectivas subjetivas. A luta armada funciona como a linha do tempo na vida deste garoto tão sujeito ao novo e a incríveis descobertas – bem como qualquer um no auge de seus dez anos. Antes dos créditos, a dedicatória revela que Ávila passara por situação similar à de Juan (ou Ernesto, sob a identidade falsa).

Para Hessel, o fato de o diretor fazer uma prestação de contas com seu passado se utilizando do pequeno protagonista como seu alter-ego é totalmente condenável. Particularmente, não vi problema nisso, mas porque considero cinema como um modo de expressão pessoal, bem como qualquer manifestação artística. Questões delicadas como ditadura, família, morte e o entrelaçamento desses temas permanecem nas profundezas da consciência da pessoa pela vida a fora, e agem como fator determinante em seu modus operandi. Mais ainda se a proposta envolver a coragem de ir a fundo nesses assuntos.

O fato de o criador aqui ser aspirante a Campanella não dá ao crítico o direito de comparar os dois diretores, que divergem em temática, estilística e estética – na qual, em minha humilde e leiga opinião, Ávila está anos-luz à frente. Reverenciar o grande precursor do cinema argentino é justo, ainda mais em se tratando de um artista sensível como o próprio Campanella. Mas não vale desdenhar o estilo romântico e a intenção de passar os sentimentos de um garoto apenas PORQUE se trata de um garoto.

A grande crítica de Hessel ao filme é o detrimento da luta armada, tema de grande importância histórica, em pró de cenas ultra-subjetivas para relatar as percepções de uma criança. A este respeito, é preciso entender que, se a intenção inicial do diretor era por em foco a estética, a subjetividade, a confusão, a paixão, o sofrimento do garoto, ele foi bem-sucedido. Se ele pretendia narrar a história ditatorial da Argentina, pondo em questão a nobreza dos movimentos guerrilheiros, deveria ter escrito um livro com uma ilustração do Perón na capa.

Não vou entrar em detalhes do que me agradou ou deixou de agradar em cada take, atuação, ou fala. Mas, ao meu gosto, os tão criticados close-ups, a superexploração da camera lenta, a impecável representação em lentes dos sentidos da criança, bem como sua supervalorização, deram ao filme o status de obra. Cinema não consiste apenas em contar histórias através das câmeras. Marcelo Hessel sem dúvidas sabe disso. Todavia, faltou-lhe sensibilidade pra entender que um filme sobre ditadura não precisa ter o foco na ditadura. Ele pode ser muito mais sobre a percepção sensorial de uma criança desnorteada, pode abordar a paixonite aflorada de um garoto reprimido, e pode sim mostrar a beleza de uma aula infantil de ginástica.

Meus inúteis parabéns ao diretor que pôde realizar isso tudo em cima de um tema denso e complexo como plano de fundo, sem banalizá-lo. Parabéns a ele que teve a coragem de desbravar uma memória extremamente triste, fazer uma belíssima releitura de sua história e mostrar tudo isso ao mundo. Isso, pra mim, é cinema.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Na Praça do Patriarca

Aproveitei a ida ao centro nesta tarde e entrei na Martins Fontes pra tomar aquele café gostoso que eles têm lá. Percebi que havia já um bom tempo que não lia algo não-relacionado ao tema do meu TCC e fui procurar um bom livro. Rodei, rodei, rodei. Olhei para a vitrine e comecei a rir ao ver o reflexo da minha pessoa carregando nos braços uma pilha de mais de dez livros e perceber que meus surtos de consumismo não ocorrem apenas em lojas de sapato. Atrás de mim, no reflexo, um moço de aproximadamente trinta ou trinta e cinco anos, alto, vestia trajes pretos, tinha piercings e tatuagens all over, e um cabelo que misturava aleatoriamente algumas partes muito longas e outras raspadas.

Pensei um pouco e decidi que não adiantava querer dominar o mundo e levar oitenta livros de uma vez sendo que, num futuro próximo, leria não mais que um ou dois. Pedi então ajuda a um vendedor. Baixinho, magro, atarracado, o jovem uniformizado de uns vinte anos mostrou-se predisposto a ajudar, talvez por achar que ia levar uma baita comissão em cima da minha compra. Coitado. Ele me olhava por debaixo dos óculos fundo de garrafa e me ouvia explicar o interesse recente em matérias relacionadas a teologia e religião. Neste momento o revolucionário do punk, que até aí já tinha me lançado uns olhares de desdém, soltou algo que mais parecia um catarro, um suspiro ou uma risadinha muito arrogante. Ignorei. Continuei esclarecendo ao vendedor que não buscava nada que pregasse, mas sim algo que incitasse a reflexão. Outra catarrada atrás de mim. Olhei pra trás, estampei um sorriso largo e fiz o desejo cínico: "Saúde".

O quatro-olhos, interessado em fazer a venda e visivelmente entediado com a calmaria do movimento, aproveitou a deixa pra se aproximar: "Você estuda teologia?" "Não, Jornalismo", foi a resposta que antecedeu o comentário fatal do cabeludo rebelde ainda atrás de mim: "Tinha que ser". Virei-me mais uma vez, abri outro sorriso e pedi a repetição: "Perdão?" "Jornalistas...", acenava com a cabeça de um lado a outro, como se inconformado com a natureza da minha formação. "O que temos?", fiz questão de parecer curiosa, afinal, estava. Neste momento, esperava qualquer tipo de retorno que me fosse fazer rir, ainda que se tratasse de um comentário ofensivo. Não me preocupei e muito menos enervei, já que ali, naquela pequena livraria, era nada além de uma pobre mortal querendo se aculturar um pouco; o quanto minhas condições intelectuais e financeiras me permitiriam.

Para o homem dos cabelos longos, minha aparência e meu curso de graduação já garantiam a certeza de que essas minhas tais condições intelectuais não iam muito longe. Afinal, eu não passo de "mais uma jovem recém ou quase-formada neste curso tão fútil e vil, que não se contenta com as parcas vantagens que a minha escolha de carreira me impõe, e então busca assuntos de nível superior à mentalidade rasa de um jornalista" (sic). "Como?", perguntei meio sem reação à explicação exageradamente formal. "Ok, vou ser mais claro. Vocês, jornalistas, acham que podem escrever sobre tudo, mas a verdade é que não entendem matemática, não entendem medicina, não entendem economia." "Isso é generaliz..." "Pensam que sabem um pouco de tudo, mas a verdade é que não sabem nada de nada. O Datena é o melhor exemplo".

Depois da finalização épica do jovem tatuado, espectadorizada pelo CDF que me atendera, decidi que minha resposta, qualquer que fosse, jamais estaria ao nível de tal presunção, tão lindamente fundamentada em preceitos profundos e filosóficos. Abri um terceiro sorriso largo e ative-me à dificuldade de escolha entre os muitos títulos em meus braços. O quatro-olhos sorriu pra mim e disse "Esse do Krishnamurti é muito legal. Você vai gostar". Levei o sugerido intitulado "Pense nisso" e saí rindo pela Rua São Bento.

Jornalistas...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Prefácio do livro 'Resquícios e Retratos: o manganês e a memória social de Serra do Navio'

A memória social navega por entre os imaginários coletivo e individual, enquanto permuta e atua na transformação imediata e constante de cada um de nós. Memória é o que nos faz quem somos, e é a partir disso que ela própria se configura.
Abaixo, alguns parágrafos que resumem o resultado de um ano de muito esforço e dedicação por parte de um grupo encantado com o que o Amapá e, mais importante, a pequena vila de Serra do Navio têm a oferecer a nós, brasileiros.
Abaixo, o início do livro que, mais que qualquer outra coisa, trouxe à tona fatias de nossa memória e ao mesmo tempo formou uma significação individual muito mais elaborada daquilo a que costumam chamar...: realidade.
Abaixo, o prefácio do livro 'Resquícios e Retratos: o manganês e a memória social de Serra do Navio', escrito por Alice Camargo, Lana Ruff e Thais Ozzetti, para o trabalho de conclusão do curso de Jornalismo no Mackenzie.

"Partiu-se da vontade de conhecer diferentes realidades de um país tão vasto e culturalmente rico, unida ao interesse por histórias regionais relevantes em âmbitos social, cultural, político e econômico, porém pouco conhecidas e divulgadas. Não por acaso escolhemos o Estado do Amapá como palco desta obra, já que até hoje esse pedaço de Brasil quase não é reconhecido ou noticiado. No entanto, não bastava encontrar uma história interessante, ainda que fosse no interior do extremo norte. Descobrimos um enredo mais profundo do que era possível imaginar, uma narrativa na qual o personagem principal é um município que vive de resquícios; e seus moradores são retratos de um passado até hoje presente. As memórias são a chave desta história, exploradas para entender a singularidade da cidade que durante tantos dias foi a nossa principal companheira: Serra do Navio.

Na década de 1940 em plena Amazônia Oriental, numa região que hoje corresponde ao território do Amapá, foram encontrados indícios de manganês - mineral essencial para a produção de aço. A descoberta acarretou grandes mudanças não somente ao cenário brasileiro, mas também ao panorama mundial, que contemplava o início da Guerra Fria. O minério então assumia função essencial para a indústria bélica, que tinha grande interesse na compra do minério. Na concorrência aberta pelo Governo Federal para decidir quem daria conta das explorações, ficou decidido que a empresa vencedora deveria investir grande parte dos lucros em intervenções sociais, melhorias urbanas e implantações nos sistemas de saúde e educação. Dava-se aí o início de uma grande história repleta de riquezas, co-protagonizada pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (ICOMI), vitoriosa da licitação.

A outra grande personagem da história foi a região que abrigava as enormes jazidas de manganês, posteriormente denominada Serra do Navio. A pequena vila previamente arquitetada para abrigar as pessoas que viriam trabalhar nas minas teve tudo a seu dispôr. Todas as condições contratuais foram cumpridas, e o Estado do Amapá ganhou ainda um complexo portuário no pequeno município de Santana e mais de duzentos quilômetros de estrada de ferro. Foi depois de quase meio século de exploração que a ICOMI decretava a extinção de suas atividades, alegando o fim da rentabilidade do negócio. Serra do Navio perdia sua mãe, a “mãe ICOMI”. Os moradores da pequena cidade viravam órfãos. Milhares de pessoas, trabalhadores e suas famílias, ficaram sem perspectiva de vida. Muitos partiram da desolada vila em busca de um novo começo, enquanto outros se agarraram ao pouco que lhes restava: o enorme carinho pelo local que durante tanto tempo lhes proporcionara paz e felicidade. Este livro é resultado de uma viagem enriquecedora ao eterno lar dessas pessoas.

A ideia inicial era resgatar uma memória coletiva, e acabamos descobrindo que esta memória jamais se esvaíra. Pelo contrário, entendemos que em Serra do Navio, uma cidade feita de saudade, as lembranças de um tempo que nunca mais volta vigoram de forma atroz. O entrelaçamento das vidas de personagens tão diferentes entre si denota uma realidade comum a todos: a escolha de permanecerem juntos e ultrapassarem o longo período de desesperança que a vila viveu.

Num só palco para várias histórias, presente e passado confundem-se num só tempo: o tempo da memória."

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Vinte e dois noutro mundo

Em dias em que a dor da perda supera qualquer outro sentimento que possa surgir dos prazeres e peripécias da rotina dessa vida mundana, até mesmo o peso de uma pena na pele é capaz de encharcar os olhos de um cidadão.

Hoje decidi reaver um pouco da amizade que costumava ter comigo mesma e encarar minha própria companhia num encontro a um. Comecei por um passo simples: fui ao cinema. Este não é o motivo dessa manifestação, mas o que se seguiu depois que comprei o ingresso para um dos piores filmes a que já assisti.

Avenida Paulista, palco nada original. Um elemento tocando violino impecavelmente. Novamente, nada fora do comum. Ele engrenava nas cordas a primeira parte do Inverno, das Quatro Estações de Vivaldi, chamada 'Allegro non molto'. Gosto de interpretar o título do movimento como um eufemismo para o "teor", por assim dizer, que a música carrega. Quem conhece deve entender por que eu disse isso.

O motivo da minha manifestação também não foge do corriqueiro, já adianto. O jovem, que não passava dos vinte e cinco anos de idade, vestia uma calça jeans desbotada, camiseta listrada e um all star rasgado no pé. Quem o visse sem o instrumento não esperaria encontrar o que eu e um senhor de boina e suspensório encontramos. No entanto, cada movimento das mãos, dos braços e da cabeça que o jovem tecia numa sincronia fora do normal era um passo a mais para um mundo à parte em que ele, o senhor e eu estávamos. No outro mundo, os carros, ônibus, mudanças nas cores dos semáforos e alguns sujeitos pró-Greenpeace continuavam executando suas tarefas como se nada de extraordinário ocorresse àquele momento.

A carga da música destacava-se avassaladoramente em meio ao barulho urbano, e nem era preciso chegar tão perto. De novo, quem já ouviu o trecho consegue ter uma ideia do que acontecera ali. Pra quem não ouviu e possui o interesse, eis a oportunidade.

Em meio a uma passarela de proletários apressados, que normalmente não dispõem de tempo para visitar brevemente um mundo paralelo, pensei numa saída. Sem saber o que fazer, decidi pela opção que me parecia a única aceitável no momento. Encostei na parede da fachada do prédio, permaneci admirando o artista e deixei meus olhos marejarem conforme as notas subiam e se aceleravam.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Eu tento

Tecendo o texto
em tarde terna
teimo em tear
sem ter tempo
Testo a testa
e tenho:
é tarde
Tanto tempo, tudo tenho
Tenho tecido, tenho tesoura
Tenho tecido, mas não tenho texto
Mas tendo tecido, tenho comigo:
eterno

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

'La Prima Cosa Bella': uma contradição inerente ao bom e velho cinema italiano

Não cabe a mim julgar a lamentável decadência do antes majestoso cinema italiano após a morte – profissional ou fatídica – dos famigerados Fellini, Antonioni, Pasolini, Tornatore (embora tenha acabado de fazê-lo). O espectador brasileiro que sente a falta da confusão frente a um filme “all’italiana” de comédia ou drama, engraçado ou triste, superficial ou profundo já pode ver a luz no fim do túnel. Eis que aparece para dar luminosas graças a um cenário obscuro o nome Paolo Virzi.

‘A primeira coisa bela’, décimo terceiro trabalho do diretor e vencedor de três Davids de Donatello e dos festivais de Montpellier, Sannio e Salerno, narra a história de uma família italiana protagonizada por Anna Michelucci (Micaela Ramazzotti), mas contada do ponto de vista do filho Bruno (Valério Mastrandea). As imagens do piegas concurso de beleza das mães de Livorno, vencido por Anna, já colocam logo no início uma contradição: a inocência da mulher, agravada por sua vitalidade, extroversão excessiva e extraordinária beleza, e um contexto histórico-social opressivo (interior da Itália na década de 70, com direito a um marido ciumento e machista e um casal de filhos pequenos).

As peripécias das quatro décadas de vida desta família são contadas de forma a ilustrar as tentativas infrutíferas de Anna de prover qualidade de vida à prole – como qualquer boa mama italiana faria. Ao fugir da casa do marido, a mãe, completamente perdida, enfrenta a partir daí julgamentos e passa a colecionar acusações às custas de sua personalidade expansiva, inclinada e “ingênua”. A conseqüência principal disso foi um filho misantropo, alienado e subversivo, que encontra uma escapatória às suas infelicidades nas drogas.

Relativismo evidente na trama é a positividade de Anna, que nunca foi capaz de manter-se num emprego ou construir uma vida tranqüila, mas manteve-se imersa em seu alto-astral a todo tempo, contraposta ao desgosto jacente e infinito do filho que tem mulher, casa e emprego perfeitos. Ao fim do filme, quando Bruno está prestes a acertar suas contas simbolicamente, Anna finalmente arranja o amor de sua vida, e o fato de isso ocorrer horas antes do seu previsto fim não parece ser motivo para entristecê-la.

A leitura de dois tempos distintos em alternância – o antigo em sépia e o atual em cores desbotadas, condizendo com a realidade de Bruno – permite ao espectador uma visão geral dos fatos, de forma a compor no imaginário o processo de criação dos filhos e evolução da mãe. A tentativa bem sucedida de tecer dois panoramas distintos no mesmo plano de fundo – a vida – não interfere na fluência de cada tempo. Pelo contrário, a cada ruptura na estrutura familiar ocasionada pelas aventuras de Anna, ocorre uma reconstrução do passado no presente. No fim, Bruno retorna à sua terra natal não só para lidar frente a frente com o motivo maior de desgosto em sua vida – sua mãe – mas também com a própria cidade e tudo a que ela remete. Dessa forma, o presente justifica-se pelo passado e vice-versa. Tudo o que acontecera ao longo dos anos mostrara enfim seu escopo.

Uma história triste num filme divertido e belíssimo roteiro com simplicidade no desenrolar dos fatos são acrescidos de elegante estética fotográfica, porém sem grandes investimentos visuais. As atuações da bela Ramazzotti e de Stefania Sandrelli (no papel da Anna moribunda) indenizam a apatia de Mastrandea. Da mesma forma, o gostinho agridoce do estilo italiano de fazer cinema compensa temas clichês como machismo, fuga através de drogas e desenvolturas familiares. A italianidade mostrou desta vez como fazer cinema de personalidade, regado a charmosas contradições, sem pecar pelos extremos.

Já o título do longa faz jus à música de mesmo nome, e não podia deixar de lado a idéia concretizada por Anna de que o amor, ou algo simples como um sorriso – a primeira coisa bela – sobressaem-se às mazelas da própria vida.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Quase memória, quase jornalismo

Mais uma reciclagem de texto - este foi o resultado do que deveria vir a ser uma resenha da belíssima obra de Carlos Heitor Cony, 'Quase memória'. Eis:

"Comovente coletânea de memórias póstumas de uma figura carioca das primeiras décadas do séc. XX, ‘Quase Memória’ impressiona pela delicadeza na condução da história, ora tida como romance, ora tida como um relato de memórias. Escrita em 1995 por Carlos Heitor Cony, a obra, que representava o regresso do jornalista ao mundo da literatura após vinte anos, ganhou, em 1996, os prêmios Jabuti de Melhor Romance e de Livro do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro.

A memória é o tema explorado pelo autor, que decide traduzir lembranças de feitos memoráveis de seu pai, Ernesto Cony Filho, para um relato extremamente sensível de uma infância cheia de cheiros, gostos, decepções, vergonhas, orgulhos e todas as peripécias de um jornalista com invejável amor à vida.
Um embrulho entregue a Cony na recepção de um hotel cujo restaurante ele freqüenta é o fio condutor da história. Aspectos como o papel utilizado para o embrulho, a perfeição com que o nó do pacote fora feito, a tinta roxa da caneta que o endereçava ao jornalista, bem como os cheiros que transbordavam de sua presença avassaladora foram decisivos para levar Cony à conclusão de que seu pai fora o remetente.

A chegada do pacote foi a porta de abertura para uma tempestade de lembranças que Ernesto Cony Filho, pai e jornalista, protagonizara. Carlos Heitor faz interessante uso da sinestesia em suas reminiscências, uma vez que a cada história, a cada fato narrado, ele incorpora o cheiro que lhe vem à mente, ou, no caso dos sanduíches, do caldo de jacaré, por exemplo, é o gosto que toma forma. As cores dos papeis de seda usados para fazer os balões tão inesquecíveis, o gosto das balas de cevada, os cheiros de manga, de brilhantina, de alfazema, tudo se elucida no que Cony chama de ‘quase-memória’.

É interessante perceber a intercalação entre presente e passado que o autor explora para manter o leitor interessado. O embrulho, como fio condutor, é o que traz à tona as lembranças, as histórias das peripécias de seu pai , de suas manias, seus hábitos, seus costumes. No entanto, ele próprio é a história, não só pela bagagem que carrega (tanto no físico quanto no pensamento), mas porque o mistério de seu conteúdo é justamente o que faz o leitor querer continuar a leitura.

No final, o fato de o jornalista escolher não abrir o embrulho pode ser entendido como uma forma de respeito às crenças do pai, talvez até mesmo uma metáfora para as características mais marcantes do mesmo. O conteúdo do pacote, como se demonstra ao final da obra, não é o que realmente importa, mas sim a viagem pela imaginação repleta de boas lembranças. Da mesma forma, para seu pai, não é a conclusão de uma viagem à Itália, não é a fórmula perfeita de uma fragrância de perfume o que fazem a vida valer a pena, e sim as ideias, as tentativas, as histórias, o imaginar, o querer fazer, e o fazer de forma feliz.

A conclusão do jornalista, ao final de uma tarde trancado numa sala de escritório frente a frente com um embrulho enigmático, é que não se havia a necessidade de descobrir o que estava dentro dele. Havia apenas as lembranças de um tempo que permaneceu lapidado em sua mente ao longo de décadas. Havia as lembranças vívidas, com cores, cheiros e sabores, tudo em sensações extremamente intensas. Isso já era o suficiente.
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‘Quase memória’ (em algumas publicações com o titulo ‘Quase memória: quase romance’) representou uma ruptura na literatura brasileira no que diz respeito ao relato de memórias. Por não se tratar especificamente de uma “resolução” de assuntos pendentes, ou de uma vingança, de uma saudade triste e inconformada, a obra de Cony trouxe ao público brasileiro um romance antológico sobre as delicadezas, complexidades e nuances da relação entre pai e filho.

Numa reflexão à parte, vale notar a carga que a obra de Cony traz através do que parecem ser simples relatos de uma infância. É importante lembrar que o jornalista, em sua mais pura e básica conotação, detém o poder da informação, e é responsável por levá-la à população. Como ele próprio diz, o intuito inicial da obra não era fazer um romance, muito menos uma grande reportagem jornalística. Não se trata de jornalismo, no entanto, trata-se de um livro com aspectos literários (a linguagem predominante é evidentemente lírica) escrito por um jornalista.

O fazer jornalístico é inerente a Cony, e a marcante característica da obra de basear-se em fatos reais já o orienta para esse sentido. Vale ressaltar que ‘Quase memória’ não é, de forma alguma, um relato objetivo, já que as próprias narrações têm como ponto de partida algo tão subjetivo: a memória – e as memórias – de CHC.

Expoente da obra literária brasileira, o livro transcende os limites do jornalismo tradicional, mas agrega aspectos do gênero a um relato cuja simplicidade na linguagem encanta. Ao mesmo tempo, percebe-se uma complexidade na forma que Cony utiliza para reviver um tempo passado e atrelá-lo ao presente e ao mistério do pacote. ‘Quase memória’ é a prova de que é possível escrever sem estar obrigatoriamente preso às amarras de gêneros específicos da escrita, e de que se pode fazê-lo com beleza e simplicidade, mesmo quando o tema abordado tem carga atroz."

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Fui traída por mim

Traiu-me a confiança que um dia depositei
Esta mala, estes quadros, este animal
Pegue-os
Leve-os
Pra que tentar, é em vão, suporei
Se o for, tente uma última vez, afinal

Trezentos dias não foram suficientes
Pra entender que nunca fui minha
Fique
Guarde
Fique com seus pensamentos incoerentes
Guarde naquela gaveta
Aquela calcinha

Traiu-me a rolha do vinho
Escrita com eternidade abastada
Esconda-a
Esqueça-a
Entendo a sinceridade de um carinho
Mas agora não mais,
Obrigada

terça-feira, 24 de abril de 2012

Uma Guerra sem vencedores

Notícias de uma Guerra Particular é um documentário brasileiro de 1999, gravado no Rio de Janeiro, dirigido por João Moreira Salles e produzido por Kátia Lund. O tema do filme gira em torno de uma batalha travada entre policiais e traficantes de drogas do Morro Santa Marta, na capital fluminense. Entrevistas em profundidade com os envolvidos no fato social, imagens dos eventos que tomam conta dessa situação e o texto narrativo em off são os três fatores fundamentais que se intercalam e convergem para tecer a continuidade da história relatada no documentário.

No sentido de fornecer ao espectador um parâmetro da situação urbana vigente (à época) no Rio de Janeiro, Salles usa e abusa de relatos não só de traficantes e policiais, mas também de especialistas, detentos e moradores da favela que vivem em meio ao fogo cruzado. A interconexão entre as falas e, ao mesmo tempo, a disparidade entre elas, dá simultaneamente a impressão de que, apesar de todos viverem o mesmo contexto social, a percepção de cada um em relação a ele é completamente diferente.

Em termos técnicos, é interessante notar a primeiríssima cena do filme, que se diferencia do modo quase tradicional recorrente em documentários neste formato. Ao invés de fazer uso de um plano geral, para propiciar ao espectador uma ambientalização e a noção relativa entre personagem e espaço, o diretor adere a um método distinto. A primeira palavra mostrada é “entorpecentes” e, não por acaso, ela vem grafada numa viatura da Polícia Civil. A interpretação deste termo, bem como de sua seleção para ilustrar a abertura do filme, pode ser dada de várias formas, a começar por seu sentido original. “Entorpecentes”, no caso, representa o ponto central de onde nasceu a guerra narrada, e a própria polícia é quem carrega essa noção nesta cena. Pode-se abstrair já deste fato o caminho que tomará o documentário, que procura desmaniqueizar a noção de policiais-heróis e traficantes-vilões.

Na tentativa de trazer o leitor para um melhor entendimento daquilo que é a tão falada, e ainda assim tão abstrata violência, Salles se utiliza de certas técnicas de aproximação; técnicas estas cruciais para a formação de uma noção possivelmente mais clara de uma situação cuja complexidade envolve corrupção, tráfico, bandidagem e muita demagogia. A customização natural dos personagens, por exemplo, ou seja, o ato de retratar traficantes com seus rostos cobertos, presidiários dentro das celas e policiais fardados e armados, une-se à força que passam as imagens flagrantes dos crimes bilaterais.

Fica clara a predominância do gênero expositivo – segundo a tipificação sustentada por Bill Nichols – em “Notícias de uma Guerra Particular”, em virtude da suma importância da argumentação verbal presente nos relatos de dois extremos de uma história. A tradicional técnica do off admite também a finalidade de exposição objetiva dos fatos, como ocorre no filme. De modo geral, é também possível perceber a presença de um caráter reflexivo na obra, já de início por tartar-se de um tema que diz respeito a questões sociais, políticas e de total interesse público. A abordagem de Salles confirma essa finalidade, uma vez que coloca num mesmo patamar bandidos e policiais. Dessa maneira, indica uma impressão de uma realidade construída.

Este é outro aspecto, que possivelmente jaz na intenção inicial do filme: a questão de heróis e vilões (como sugere o senso comum), ou seja, policiais e vilões serem retratados enquanto participantes do mesmo contexto social. Ou seja, são colocados no mesmo nível de envolvimento na famosa “guerra particular” a que Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE e um dos entrevistados se refere.

“Notícias de uma guerra particular” é o retrato de um modo de compreender o cenário da violência urbana na época vigente no Rio de Janeiro. Se considerarmos a perspectiva conclusiva de que se trata de uma guerra sem um fim possível, percebemos a atemporalidade da obra, que justifica o fato de ela, mais de uma década depois de ser produzida, ser tão atual e definir com tanto primor o que ainda vigora em muitos cenários nacionais: uma guerra diária, particular e sem vencedores.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Perfil: Charleaux

Charleaux sabia que às 18h30 do dia 10 de novembro de 2011, uma quinta-feira escaldada pelo calor paulistano, tinha que estar em frente à entrada da Livraria Cultura da Avenida Paulista. Ele e seus quase dois metros de altura apareceram num andar meio desengonçado e encurvado com uma mochila nas costas e um olhar sério sob as armações pretas de seus óculos, dizendo que queria comprar um livro.

João Paulo, um jornalista meio alternativo de trinta e dois anos, usava uma camisa xadrez, um jeans básico desbotado e um all star sujo e velho. Sua expressão tensa contradizia com sua forma expansiva de gesticular e seus modos bem-educados. Enquanto andava vagarosamente, criticou a superlotação da livraria, da Avenida Paulista, de São Paulo, e sugeriu um restaurante logo na esquina. Entrando no local, olhou para cima e comentou numa súbita mudança de ideia que comeria um pão na chapa numa “padoca”. Logo desistiu da idéia, talvez por preguiça de andar mais. Na primeira mesa vazia que avistou, puxou uma cadeira e estendeu os braços, como se quisesse dizer: “Pode se sentar”.

Deu uma olhada no menu, aparentemente buscando algo específico, e franziu o nariz com uma expressão de dúvida. “O que você vai querer?”. Olhou o cardápio mais alguns segundos e chamou o garçom: “Dois sucos de laranja, por favor”.

Estava cansado e tinha olheiras profundas, oriundas da falta de sono na noite anterior. Charleaux havia vindo do Chile a São Paulo para participar de uma reunião da Oboré, empresa onde trabalha, e outra da Folha de S. Paulo, jornal para o qual produz alguns textos como correspondente. Afirmou que não gostava de entrar em detalhes sobre sua vida pessoal. Mesmo assim, pôs-se logo a relatar uma de suas experiências como adolescente que mais lhe marcaram.

Em 2010, sua sogra teve câncer, contou, e ele e sua mulher, Marly, concordaram em ir para o interior do Chile, onde ela morava. Charleaux largou seu emprego n’O Estado de S.Paulo e passou cerca de seis meses cuidando de ovelha e mel numa montanha a 700 quilômetros ao sul de Santiago onde nem eletricidade tinha. “Esqueci o jornalismo por meio ano”. Ele parecia tentar demonstrar um ar de indiferença, meio forçadamente.

Quando os sucos chegaram, começou a contar que mora atualmente em Temuco: “É um pouco mais ‘cidade’, mas na frente da minha casa tem cavalo, vaca, essas coisas”. Charleaux não liga para o clima bucólico. Muito pelo contrário, ele faz questão várias vezes de deixar claro que o trabalho que faz como freelancer para a Folha de S.Paulo é apenas por necessidade, já que sua profissão natural é cozinhar. Ele ama passar seu tempo com o filho e o classifica como seu melhor amigo. Por isso, sua carreira não é no jornalismo, e sim como “dono de casa”.

Quando perguntado sobre seu trabalho na Oboré, uma empresa especializada em projetos comunicacionais, Charleaux recuou um pouco como se um ponto delicado de sua vida tivesse sido tocado. “Grande!”, chamou o garçom: “O que tem lá de bom de doce? Você não quer um doce?” A torta de nozes que pediu deu-lhe coragem pra continuar e, após respirar fundo, contou que levou quatro anos de sua vida alternando-se entre emprego e faculdade, o que lhe rendeu uma série de problemas. “Eu não tinha carro, meu pai tinha um carro só e não dava pra pegar. Eu vou começar a chorar...” Nessa época desenvolveu uma espécie de síndrome do pânico, passou a ter ataques de ansiedade e bipolaridade e começou a demonstrar alguns sintomas que nem ele sabe diagnosticar. Toma remédios de tarja preta até hoje e deixa escapar às vezes alguns resquícios dessas perturbações.

João Paulo Charleaux gosta de encontrar em qualquer tipo de assunto uma deixa para refletir questões da vida e da sociedade. Carrega uma expressão de intensidade, de profundidade, meio confuso com uma aparente tempestade de idéias que passam por sua cabeça a cada minuto. Talvez como uma decorrência de sua essência reflexiva, consegue apresentar pontos analíticos para cada situação que lhe é colocada à frente. A respeito de sua primeira experiência no exterior, quando foi a Havanna aos dezenove anos participar de um congresso da Associação Mundial de Rádio Comunitária, contou: “Eu vi muita coisa acontecendo ali. As casas que eu visitei, os cubanos que eu conheci, tudo isso foi muito efervescente, eu fiquei muito tempo com isso tudo dando volta. Eu sou muito sensível às coisas”. Ficou na cidade cerca de dez dias e foi lá que conheceu sua esposa. “Eu sou muito tímido, passou uma semana e não aconteceu nada entre nós. […] E no ultimo dia fiquei com a Marly... um dia”, contou, olhando mais uma vez para cima.

Quando entrou no assunto, desatou a falar sem criar pausas para mastigar sua torta. Contou com a boca cheia que vencera um concurso de jornalismo de um lugar chamado Vinte e Cinco de Abril e ganhara a oportunidade de ir a Portugal. Seu tom ao relatar essa experiência, apesar da boca cheia, não foi de satisfação ou orgulho, mas de descaso, como se o prêmio não tivesse sido merecido, mas o concurso que era fácil demais. Charleaux não pareceu atribuir qualquer valor que fosse à conquista, mas disse que não tinha muita noção de onde ficava Portugal – ou a Espanha, onde Marly estava então: “Ainda sou bastante burro, mas eu era mais”, afirmou, olhando para baixo desta vez.

Charleaux demonstra ter auto-estima tremendamente baixa, e ele não deixa de lembrar a si mesmo e aos outros suas principais "falhas". Quando falava de sua história, explicou que prestou vestibular na Universidade Federal do Paraná, mas zerou em algumas matérias exatas. “Sou muito burro, né, aí caí fora". Contou então que acabou prestando uma universidade em Santos e passou entre os cinco primeiros. Fez questão de ressaltar: “Na UniSantos eu me saí bem, o que diz muito sobre a qualidade do bagulho”.

Sua humildade ultrapassa muitas vezes a tênue linha que a separa da insegurança. Quando perguntado sobre as causas que o levaram a fazer jornalismo, Charleaux disse que o que queria mesmo era ser mordomo. Acabou entrando para essa area porque tinha amigos que tocavam numa banda de rock e eram jornalistas. A vida “legal” deles foi o que o influenciou. No entanto, agora que trabalha para o veículo de maior circulação no Brasil, considera: “Eu não sou da Folha. Eles me pagam por matéria e eu não sou ninguém lá”. E como sempre, analisando sua situação por um lado filosófico, de um ponto de vista mais geral, acredita: “Não existe carreira, isso é bobagem. ‘Jornalista’… Não existe nada disso, são apenas palavras. Você faz coisas, toma opções, e por isso eu estou aqui”.

Charleaux parece, de uma forma inconsciente, unir duas de suas características mais marcantes para construir suas visões e ideias. Seu modo reflexivo e analítico de perceber as coisas à sua volta, bem como a insegurança inerente à sua personalidade, fazem com que ele se mostre um tanto em cima do muro, como quem tem medo de emitir opinião. Independentemente do tema em questão, Charleaux, quase como um jornalista nato, prefere apresentar ao menos os dois lados da moeda e dizer: “Ainda estou formando minha opinião em relação a isso”. Quando falava de uma matéria que fez sobre a Cruz Vermelha no Haiti, contou num tom agoniado: “Tinha outro envolvimento com a notícia, sabe? Menos descritivo, menos discursivo. E o jornal é isso, ficar contando as coisas meio distante”. Ele incomoda-se com a distância que o jornalismo tem dos fatos reais. Afirma fazer seu trabalho apenas porque precisa, mas admite uma certa razão dos grandes veículos. “Eu via criança morrer e escrevia. Tenho certeza de que minha matéria não provocou nada. Talvez não deva provocar mesmo, né? Mas isso gera questionamentos existenciais”.

Charleaux não tem muita habilidade para clarezas. Em meio a uma conversa, joga lembranças e ideias como num fluxo de consciência, sem dar muita continuidade ao assunto em questão. Enquanto discorria sobre sua vida na Oboré e as patologias que desenvolvera, perdeu-se nas memórias de seu trabalho num programa de rádio sobre sindicatos de trabalhadores rurais. Sem que terminasse ou concluísse seu raciocínio, passou a refletir sobre o aspecto da pobreza com o qual lidou de perto nessa época. “Me deu uma noção muito clara de pobreza, de trabalhar, de injustiça social... Essa gente existe, sabe? É bastante importante você compartir da existência e da luta dessas pessoas. É diferente você dar bom dia pra sua empregada de manhã sabendo que ela veio da puta que pariu de trem. Você vê qual é”.

Ao fim de cada assunto, diz “Olha, isso é bem complexo. Podemos ficar aqui vários dias conversando”. E então perde a linha de raciocínio mais uma vez.

Charleaux é capaz de discorrer sobre a atual situação do jornalismo no Brasil, como ele mesmo diz, por alguns dias. O que ele sempre frisa, no entanto, é que é preciso avaliar os fatos com a cabeça aberta, mas os jornalistas brasileiros não podem fazer isso na imprensa. Critica a grande quantidade de material estrangeiro sobre a própria América Latina que nós, brasileiros compramos, e explica, mais uma vez olhando para cima: “Se a gente não ficasse só comprando artigo de gringo, se produzíssemos aqui uma reflexão – como deveríamos – poderíamos dar conta dessa realidade mais complexa.

Depois de pedir um café, como se num gesto sutil pedisse para finalizar o papo, Charleaux admitiu sonhar que os jornais brasileiros sejam vistos como produtores de conhecimento e observadores. “É importante, precisa acontecer isso, alguma audácia”. Depois, quase arrependido de ter lapidado uma opinião tão forte, deu o ultimo gole em seu café e disse “É por isso que eu não gosto dessas entrevistas. Não existe carreira, existe gente. A gente faz coisas, se apaixona e tal”. Charleaux pediu que o gravador fosse desligado, mostrando-se evidentemente incomodado, e pediu desculpas: “Sou meio sensível às coisas, sabe?”