terça-feira, 15 de março de 2011

Coincidência

Saía do trem em King’s Cross e lutava com suas duas malas de viagem para subir as escadas até a plataforma do metrô. Oito horas de viagem amassaram suas roupas, despentearam seus cabelos e apagaram a maquiagem que cobria as olheiras da viajante de jeans e tênis.

Como se sabe, o metrô de Londres é o único no mundo que não faz barulho, e o povo, assim como o trem local, é um tanto contido no que se refere às palavras. O ocasional robótico “MIND THE GAP” ou “THANK YOU FOR RIDING LONDON UNDERGROUND” eram quase os únicos ruídos que poluíam o ar naquele momento. Via todos normalmente aconchegados em suas discretas peculiaridades particulares, exceto por um homem. Peculiar, particular, mas não discreto.

Muito alto, o homem branco usava sapatos pretos, calças pretas, um pulôver preto, sobretudo preto, luvas pretas. O chapéu – preto – levava um logotipo prateado atrás e a gravata era vermelha com pequenas bolas brancas. O homem branco do chapéu preto e gravata vermelha, que aparentava 50 ou 60 anos, assobiava imponente, mas tranquilamente uma melodia com ares bucólicos.

Ela desceu em Oxford Circus e ele, logo atrás. Brigava ainda com a bagagem e sua poderosa aliada - a escada - para chegar enfim às portas da estação e, depois delas, à inconfundível cinzenta atmosfera londrina. Acendeu um cigarro enquanto recuperava energias para retomar sua batalha com as malas. A fumaça que soltava confundia-se com a respiração gelada que saía de sua ofegação. Seus dentes doíam ao inspirar o frio do ar.

Vindo de trás, ouviu num inglês reconhecidamente britânico: “É difícil viajar às vezes, não?”. Respondeu educadamente: “Às vezes... sim.”. E em meio a um aceno: “Te vejo por aí.”, despediu-se o homem do chapéu. Um sentimento de boas vindas, misturado à sensação de estranhice e à vontade de rir na cara do ocorrido, abriu um sorriso em seu rosto antes que ela tragasse mais uma vez o cigarro bolado de tabaco holandês.

Uma soneca, um banho e uma pizza mais tarde, saiu às ruas a viajante para desfrutar a esfumaçada noite da cidade cinza. O álcool rendeu-lhe algumas amizades e surtiu-lhe a disposição de vagar de pub em pub durante horas. Foi em um qualquer às margens do Tâmisa, após uma caminhada regada a gargalhadas e imprudências pelo St. James Park, que ela pediu a tradicional Guinness e sentou-se para admirar uma vez mais as corriqueiras estranhices individuais daquele povo. Em meio à muvuca, o dernière de um chapéu-coco preto, ornado com um símbolo metálico, acenava para ela.

Ria ao contar sobre o ser conhecido às recentes amizades embriagadas, mas embriagada ficou ela quando o homem do chapéu-coco veio dirigir-lhe a palavra. “Do que você está rindo?” foi a pergunta encharcada daquele sotaque inesquecível. “Nos conhecemos esta tarde.” foi a resposta que abriu o sorriso mais cinematográfico no rosto daquele ente tão peculiar. “É verdade. Você passou de uma hippie para uma lady.”.

A maquiagem cobria novamente as olheiras da mesma jovem, que agora tinha cabelos penteados e usava saia, blusa de babados e um sapato de boneca. Essa lady veio a descobrir duas horas de conversa depois que o homem do chapéu-coco era na realidade pintor, poeta e escultor, freqüentador assíduo da Westminster Abbey e falava seis idiomas com a fluência de uma perfeição ímpar.

“Cheguei em casa hoje à tarde e escrevi em meu diário ‘Conheci uma hippie no metrô. Disse-lhe que nos veríamos em breve. Foi poético.’”. O senhor de 50 ou 60 anos não esboçava nenhuma intenção com a jovem viajante, a não ser a de explorar a poesia daquela armadilha daquilo que chamam acaso.

“Que linda é a casualidade.”, recitou. “Desculpe-me, mas não acredito em casualidades.”, repliquei. Agora o sorriso cinematográfico que se abriria era em meus lábios: “Não, querida, você me entendeu errado. Casualidades de fato não existem; o que é lindo é a causalidade.”.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Nostalgia

Sente. 'Stá aí.
Seja, ouça sair. Saia e ouça soar.
Saia da cena, sai da sena!
Sente o samba, ouça soar.
Essa cidade, mesmo céu.
Sensação de segundo, sensação de sem tempo.
Sem tempo, sem ver. Sem tempo, sem céu. Sem ver.
Sensação de cegueira, cegado de lágrimas.
Eu sei. Sem senso sumir, mas sei.
Mas sente o que eu sinto, 'stou aí.
Saia da cena, sai da sena!
Ouça soar.

Inverno vira primavera.
Verão, outono.
Vai, voa, volta, vê. Vive.
Revê, faça haver.
Dessa vez,
outono foi verão e
primavera foi inverno.
Faça haver, voa.
Revê:
terno.

Sai pra ver, voa pra sair.
Voa pra sumir.
Vai ser, suma pra voar.
Suma pra vibrar.
Sente pra virar, vire pra saber.
Saia para haver.
Vai para viver,
vai para rever
a sua primavera.
Volte para ver
o outono eterno.
Ouve, ouça.
Seu inverno
será,
verá:
e terno