sábado, 14 de janeiro de 2012

Perfil: Charleaux

Charleaux sabia que às 18h30 do dia 10 de novembro de 2011, uma quinta-feira escaldada pelo calor paulistano, tinha que estar em frente à entrada da Livraria Cultura da Avenida Paulista. Ele e seus quase dois metros de altura apareceram num andar meio desengonçado e encurvado com uma mochila nas costas e um olhar sério sob as armações pretas de seus óculos, dizendo que queria comprar um livro.

João Paulo, um jornalista meio alternativo de trinta e dois anos, usava uma camisa xadrez, um jeans básico desbotado e um all star sujo e velho. Sua expressão tensa contradizia com sua forma expansiva de gesticular e seus modos bem-educados. Enquanto andava vagarosamente, criticou a superlotação da livraria, da Avenida Paulista, de São Paulo, e sugeriu um restaurante logo na esquina. Entrando no local, olhou para cima e comentou numa súbita mudança de ideia que comeria um pão na chapa numa “padoca”. Logo desistiu da idéia, talvez por preguiça de andar mais. Na primeira mesa vazia que avistou, puxou uma cadeira e estendeu os braços, como se quisesse dizer: “Pode se sentar”.

Deu uma olhada no menu, aparentemente buscando algo específico, e franziu o nariz com uma expressão de dúvida. “O que você vai querer?”. Olhou o cardápio mais alguns segundos e chamou o garçom: “Dois sucos de laranja, por favor”.

Estava cansado e tinha olheiras profundas, oriundas da falta de sono na noite anterior. Charleaux havia vindo do Chile a São Paulo para participar de uma reunião da Oboré, empresa onde trabalha, e outra da Folha de S. Paulo, jornal para o qual produz alguns textos como correspondente. Afirmou que não gostava de entrar em detalhes sobre sua vida pessoal. Mesmo assim, pôs-se logo a relatar uma de suas experiências como adolescente que mais lhe marcaram.

Em 2010, sua sogra teve câncer, contou, e ele e sua mulher, Marly, concordaram em ir para o interior do Chile, onde ela morava. Charleaux largou seu emprego n’O Estado de S.Paulo e passou cerca de seis meses cuidando de ovelha e mel numa montanha a 700 quilômetros ao sul de Santiago onde nem eletricidade tinha. “Esqueci o jornalismo por meio ano”. Ele parecia tentar demonstrar um ar de indiferença, meio forçadamente.

Quando os sucos chegaram, começou a contar que mora atualmente em Temuco: “É um pouco mais ‘cidade’, mas na frente da minha casa tem cavalo, vaca, essas coisas”. Charleaux não liga para o clima bucólico. Muito pelo contrário, ele faz questão várias vezes de deixar claro que o trabalho que faz como freelancer para a Folha de S.Paulo é apenas por necessidade, já que sua profissão natural é cozinhar. Ele ama passar seu tempo com o filho e o classifica como seu melhor amigo. Por isso, sua carreira não é no jornalismo, e sim como “dono de casa”.

Quando perguntado sobre seu trabalho na Oboré, uma empresa especializada em projetos comunicacionais, Charleaux recuou um pouco como se um ponto delicado de sua vida tivesse sido tocado. “Grande!”, chamou o garçom: “O que tem lá de bom de doce? Você não quer um doce?” A torta de nozes que pediu deu-lhe coragem pra continuar e, após respirar fundo, contou que levou quatro anos de sua vida alternando-se entre emprego e faculdade, o que lhe rendeu uma série de problemas. “Eu não tinha carro, meu pai tinha um carro só e não dava pra pegar. Eu vou começar a chorar...” Nessa época desenvolveu uma espécie de síndrome do pânico, passou a ter ataques de ansiedade e bipolaridade e começou a demonstrar alguns sintomas que nem ele sabe diagnosticar. Toma remédios de tarja preta até hoje e deixa escapar às vezes alguns resquícios dessas perturbações.

João Paulo Charleaux gosta de encontrar em qualquer tipo de assunto uma deixa para refletir questões da vida e da sociedade. Carrega uma expressão de intensidade, de profundidade, meio confuso com uma aparente tempestade de idéias que passam por sua cabeça a cada minuto. Talvez como uma decorrência de sua essência reflexiva, consegue apresentar pontos analíticos para cada situação que lhe é colocada à frente. A respeito de sua primeira experiência no exterior, quando foi a Havanna aos dezenove anos participar de um congresso da Associação Mundial de Rádio Comunitária, contou: “Eu vi muita coisa acontecendo ali. As casas que eu visitei, os cubanos que eu conheci, tudo isso foi muito efervescente, eu fiquei muito tempo com isso tudo dando volta. Eu sou muito sensível às coisas”. Ficou na cidade cerca de dez dias e foi lá que conheceu sua esposa. “Eu sou muito tímido, passou uma semana e não aconteceu nada entre nós. […] E no ultimo dia fiquei com a Marly... um dia”, contou, olhando mais uma vez para cima.

Quando entrou no assunto, desatou a falar sem criar pausas para mastigar sua torta. Contou com a boca cheia que vencera um concurso de jornalismo de um lugar chamado Vinte e Cinco de Abril e ganhara a oportunidade de ir a Portugal. Seu tom ao relatar essa experiência, apesar da boca cheia, não foi de satisfação ou orgulho, mas de descaso, como se o prêmio não tivesse sido merecido, mas o concurso que era fácil demais. Charleaux não pareceu atribuir qualquer valor que fosse à conquista, mas disse que não tinha muita noção de onde ficava Portugal – ou a Espanha, onde Marly estava então: “Ainda sou bastante burro, mas eu era mais”, afirmou, olhando para baixo desta vez.

Charleaux demonstra ter auto-estima tremendamente baixa, e ele não deixa de lembrar a si mesmo e aos outros suas principais "falhas". Quando falava de sua história, explicou que prestou vestibular na Universidade Federal do Paraná, mas zerou em algumas matérias exatas. “Sou muito burro, né, aí caí fora". Contou então que acabou prestando uma universidade em Santos e passou entre os cinco primeiros. Fez questão de ressaltar: “Na UniSantos eu me saí bem, o que diz muito sobre a qualidade do bagulho”.

Sua humildade ultrapassa muitas vezes a tênue linha que a separa da insegurança. Quando perguntado sobre as causas que o levaram a fazer jornalismo, Charleaux disse que o que queria mesmo era ser mordomo. Acabou entrando para essa area porque tinha amigos que tocavam numa banda de rock e eram jornalistas. A vida “legal” deles foi o que o influenciou. No entanto, agora que trabalha para o veículo de maior circulação no Brasil, considera: “Eu não sou da Folha. Eles me pagam por matéria e eu não sou ninguém lá”. E como sempre, analisando sua situação por um lado filosófico, de um ponto de vista mais geral, acredita: “Não existe carreira, isso é bobagem. ‘Jornalista’… Não existe nada disso, são apenas palavras. Você faz coisas, toma opções, e por isso eu estou aqui”.

Charleaux parece, de uma forma inconsciente, unir duas de suas características mais marcantes para construir suas visões e ideias. Seu modo reflexivo e analítico de perceber as coisas à sua volta, bem como a insegurança inerente à sua personalidade, fazem com que ele se mostre um tanto em cima do muro, como quem tem medo de emitir opinião. Independentemente do tema em questão, Charleaux, quase como um jornalista nato, prefere apresentar ao menos os dois lados da moeda e dizer: “Ainda estou formando minha opinião em relação a isso”. Quando falava de uma matéria que fez sobre a Cruz Vermelha no Haiti, contou num tom agoniado: “Tinha outro envolvimento com a notícia, sabe? Menos descritivo, menos discursivo. E o jornal é isso, ficar contando as coisas meio distante”. Ele incomoda-se com a distância que o jornalismo tem dos fatos reais. Afirma fazer seu trabalho apenas porque precisa, mas admite uma certa razão dos grandes veículos. “Eu via criança morrer e escrevia. Tenho certeza de que minha matéria não provocou nada. Talvez não deva provocar mesmo, né? Mas isso gera questionamentos existenciais”.

Charleaux não tem muita habilidade para clarezas. Em meio a uma conversa, joga lembranças e ideias como num fluxo de consciência, sem dar muita continuidade ao assunto em questão. Enquanto discorria sobre sua vida na Oboré e as patologias que desenvolvera, perdeu-se nas memórias de seu trabalho num programa de rádio sobre sindicatos de trabalhadores rurais. Sem que terminasse ou concluísse seu raciocínio, passou a refletir sobre o aspecto da pobreza com o qual lidou de perto nessa época. “Me deu uma noção muito clara de pobreza, de trabalhar, de injustiça social... Essa gente existe, sabe? É bastante importante você compartir da existência e da luta dessas pessoas. É diferente você dar bom dia pra sua empregada de manhã sabendo que ela veio da puta que pariu de trem. Você vê qual é”.

Ao fim de cada assunto, diz “Olha, isso é bem complexo. Podemos ficar aqui vários dias conversando”. E então perde a linha de raciocínio mais uma vez.

Charleaux é capaz de discorrer sobre a atual situação do jornalismo no Brasil, como ele mesmo diz, por alguns dias. O que ele sempre frisa, no entanto, é que é preciso avaliar os fatos com a cabeça aberta, mas os jornalistas brasileiros não podem fazer isso na imprensa. Critica a grande quantidade de material estrangeiro sobre a própria América Latina que nós, brasileiros compramos, e explica, mais uma vez olhando para cima: “Se a gente não ficasse só comprando artigo de gringo, se produzíssemos aqui uma reflexão – como deveríamos – poderíamos dar conta dessa realidade mais complexa.

Depois de pedir um café, como se num gesto sutil pedisse para finalizar o papo, Charleaux admitiu sonhar que os jornais brasileiros sejam vistos como produtores de conhecimento e observadores. “É importante, precisa acontecer isso, alguma audácia”. Depois, quase arrependido de ter lapidado uma opinião tão forte, deu o ultimo gole em seu café e disse “É por isso que eu não gosto dessas entrevistas. Não existe carreira, existe gente. A gente faz coisas, se apaixona e tal”. Charleaux pediu que o gravador fosse desligado, mostrando-se evidentemente incomodado, e pediu desculpas: “Sou meio sensível às coisas, sabe?”