quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Maldita

Eram quatro horas de uma tarde de janeiro e fazia 6oC na Rua Augusta, em Lisboa. Lá fora, o sol vigoroso fracassava na tentativa de aquecer o que o inverno esfriava. O céu, no entanto, era um azul só e, nas calçadas, clientes acomodados em mesinhas de madeira para um chá da tarde deliciavam-se com o fado de Amália que tocava na loja de discos. O cheiro, uma mistura de uma leva de pastéis de Belém acabados de sair do forno, com a brisa do Tejo que fluía lá depois da Praça do Comércio. Dentro de um restaurante, esperava meu bacalhau cozido com batatas e tomava uma água com gás. Duas senhoras em sua melhor idade sentadas ao meu lado conversavam e tomavam um café preto.

- Será que ele não pod' fechar esta cortina? – ouvi uma delas reclamar.
- O que acontece? É ela a vir? – perguntou a amiga.
- Sim. Tardou, mas não falhou.
- Tem certeza d' que não está enganada?
- Tenho sim, está a me seguir há semanas, esta maldita.
- Ora pois, livre-se dela duma vez. Conheço a pessoa e a solução perfeitas pra t' ajudar.
- É sério? Ajud'-me então. Quero dar um jeito nela, mas não sei como.
- Bem, a primeira coisa a se fazer é...
- Ora, fale baixo minha cara, não queremos ser indiscretas.
- Ah sim, estás certa.
Meu bacalhau acabara de chegar à mesa.
- Conte-me quando estivermos sozinhas. Melhor.
- Sim. Melhor.
- Com licença, não vais ficar chateada comigo, mas se incomoda se eu p’rguntar quanto vale est’ prato? – virou-se para mim docemente.
Eu na verdade nem tinha olhado o preço no cardápio, então não sabia.
- Imagine. Não tenho certeza, mas acho que seis euros.
Ela acenou com a cabeça e voltou à cúmplice:
- Não sei quanto ao daqui, cara, mas o bacalhau à Braz do Correeiros é bastant’ bom.
- Hum...
- Mas mais caro.
- Hum...
- Outra coisa que ‘stá a me perseguir e a me deixar louca é esta fome que não se acaba.
A colega ria discretamente com a mudança casual de assunto.
- Já tomei meu café d’ tarde, comi três daqueles pasteizinhos que a dona Piedade faz, iguaizinhos aos da Fabriquinha, e quero almoçar mais uma outra vez!
- Almoces, ora pois!
- ‘Stou a tomar um remédio para o cansaço. Só pode ser. Só pode ser ele que ‘stá a me dar sempre “ap’tite”.
- Sim, sim. E bacalhoada não fará lá m’to bem a essas horas.
- Um doce!
- Como?
- Joaquim, traga-me o creme da casa!

Acredito que falavam sobre menopausa.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ici

Flui cinza, nunca índigo
O rio
Venta em alvidão, mas não vejo uniformidade
No céu
A noite aberta em outros, lá é
Fechada em mim
E como a gota d’água
A lua enche em clarão
Não mais em metáfora

Dentro

Caio outra vez sob o peso do medo

Sem que minhas pernas tremam
Sucumbo ao tremor tempestuoso
Que vigora dentro de minha mente
De meus pensamentos
De minhas especulações

O maior dos riscos está por vir e
Sua idéia faz-se tão suficientemente presente
De tal forma que não me atrai mais um no momento

Perdão
Por ser medrosa

Vanguarda parnasiana

Gostaria de saber ser poética
Saber rimar como manda a estética
Mas consideremos uma situação hipotética
Em que eu não ligue tanto pra fonética

Seria tanta heresia
Criar em ‘obra’ uma assimetria
E ao feio fazer apologia
E no lindo transpor anomalia?

Minto,
Jamais seria tão cética
A ponto de tornar-me herética
E ignorar toda a dialética
Dessa tal poesia

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Primavera escolar

Desabafo:

Era uma manhã de terça-feira. Os raios solares trespassavam as frestas entre as folhagens das árvores de pau-ferro. A pequena, porém rara variedade na flora cheirava a nostalgia, e a alta freqüência do canto dos pássaros ao longe brigava com os murmúrios vindos de dentro dos prédios.

Além do verde, formas esfumaçadas constituíam-se em nuvens passantes, e o olor da brisa contrastava com o tabaco tragado e cuspido nos arredores. Em volta, tijolos envelhecidos das construções em meio ao bosque ralo alternavam-se com janelas de vidro e vigas enferrujadas. Da mesma forma, no chão, restos de cigarro intercalavam-se com o manifesto silencioso do musgo que nascia debaixo das pedras cimentadas.

O sabor era de tempos passados, e havia no ar uma sensação de tranqüilidade, não obstante pairasse no ar o desespero berrante inerente aos alunos que caminhavam por lá.