terça-feira, 24 de abril de 2012

Uma Guerra sem vencedores

Notícias de uma Guerra Particular é um documentário brasileiro de 1999, gravado no Rio de Janeiro, dirigido por João Moreira Salles e produzido por Kátia Lund. O tema do filme gira em torno de uma batalha travada entre policiais e traficantes de drogas do Morro Santa Marta, na capital fluminense. Entrevistas em profundidade com os envolvidos no fato social, imagens dos eventos que tomam conta dessa situação e o texto narrativo em off são os três fatores fundamentais que se intercalam e convergem para tecer a continuidade da história relatada no documentário.

No sentido de fornecer ao espectador um parâmetro da situação urbana vigente (à época) no Rio de Janeiro, Salles usa e abusa de relatos não só de traficantes e policiais, mas também de especialistas, detentos e moradores da favela que vivem em meio ao fogo cruzado. A interconexão entre as falas e, ao mesmo tempo, a disparidade entre elas, dá simultaneamente a impressão de que, apesar de todos viverem o mesmo contexto social, a percepção de cada um em relação a ele é completamente diferente.

Em termos técnicos, é interessante notar a primeiríssima cena do filme, que se diferencia do modo quase tradicional recorrente em documentários neste formato. Ao invés de fazer uso de um plano geral, para propiciar ao espectador uma ambientalização e a noção relativa entre personagem e espaço, o diretor adere a um método distinto. A primeira palavra mostrada é “entorpecentes” e, não por acaso, ela vem grafada numa viatura da Polícia Civil. A interpretação deste termo, bem como de sua seleção para ilustrar a abertura do filme, pode ser dada de várias formas, a começar por seu sentido original. “Entorpecentes”, no caso, representa o ponto central de onde nasceu a guerra narrada, e a própria polícia é quem carrega essa noção nesta cena. Pode-se abstrair já deste fato o caminho que tomará o documentário, que procura desmaniqueizar a noção de policiais-heróis e traficantes-vilões.

Na tentativa de trazer o leitor para um melhor entendimento daquilo que é a tão falada, e ainda assim tão abstrata violência, Salles se utiliza de certas técnicas de aproximação; técnicas estas cruciais para a formação de uma noção possivelmente mais clara de uma situação cuja complexidade envolve corrupção, tráfico, bandidagem e muita demagogia. A customização natural dos personagens, por exemplo, ou seja, o ato de retratar traficantes com seus rostos cobertos, presidiários dentro das celas e policiais fardados e armados, une-se à força que passam as imagens flagrantes dos crimes bilaterais.

Fica clara a predominância do gênero expositivo – segundo a tipificação sustentada por Bill Nichols – em “Notícias de uma Guerra Particular”, em virtude da suma importância da argumentação verbal presente nos relatos de dois extremos de uma história. A tradicional técnica do off admite também a finalidade de exposição objetiva dos fatos, como ocorre no filme. De modo geral, é também possível perceber a presença de um caráter reflexivo na obra, já de início por tartar-se de um tema que diz respeito a questões sociais, políticas e de total interesse público. A abordagem de Salles confirma essa finalidade, uma vez que coloca num mesmo patamar bandidos e policiais. Dessa maneira, indica uma impressão de uma realidade construída.

Este é outro aspecto, que possivelmente jaz na intenção inicial do filme: a questão de heróis e vilões (como sugere o senso comum), ou seja, policiais e vilões serem retratados enquanto participantes do mesmo contexto social. Ou seja, são colocados no mesmo nível de envolvimento na famosa “guerra particular” a que Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE e um dos entrevistados se refere.

“Notícias de uma guerra particular” é o retrato de um modo de compreender o cenário da violência urbana na época vigente no Rio de Janeiro. Se considerarmos a perspectiva conclusiva de que se trata de uma guerra sem um fim possível, percebemos a atemporalidade da obra, que justifica o fato de ela, mais de uma década depois de ser produzida, ser tão atual e definir com tanto primor o que ainda vigora em muitos cenários nacionais: uma guerra diária, particular e sem vencedores.